Meu diário de bordo

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Finesse

Foi-se o tempo pacato da candura,
a hora do recato e inocente compostura.
Ficou um talho aberto pela castração,
cerzido de retalho, atropelo e frustração.


Salve a meretriz que vai a luta;
essa infeliz que tem fama sem ser puta!
Riam sim dessa fulana, criatura hilária
de quem não se sabe a cama, mas a tem por otária.
Viva a doce prostituta que nesse teatro vil
só conhece a labuta, e o gesto servil.


Espuma na língua infame o fel da acusação,
vociferado desde o prenome, sem consternação.
Bravos! Morre a míngua e não sem suspiros
o sorriso com íngua, que viveu entre vampiros!

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Estatutos do Poeta

Ao poetas deveria ser dado somente o direito de sonhar, sem ter que se preocupar com responsabilidades, sem ter que se guiar pelos relógios dessa terra.
Os poetas tem as estrelas e os astros como parâmetros.

Aos poetas não deveria ser dado nenhuma obrigação, não para fazê-los vagabundos, mas para deixá-los livres para o mundo.
Aos poetas não se deveria impor o sacrifício de ganhar o seu sustento, o poeta precisa menos do alimento para o corpo que o linimento para a su´alma.

Aos poetas, jamais deveriam ser solicitadas prestação de contas; hora marcada, noção de dia e mês, nem se é de tarde ou madrugada.
Os poetas são seres sem amarras, sem censuras e sem travas. Não sabem viver algemados, não suportam bater o ponto. Não são felizes com asas cortadas.

Os poetas deveriam ser perdoados dos seus esquecimentos dos seus devaneios fora de estação.
Os poetas deveriam ser poupados da razão. Deveriam ter o direito de interromper o que quer que fosse, para rabiscar um pensamento, rascunhar um poema, em qualquer lugar que estivesse, em qualquer hora que a inspiração chegasse, para jamais correrem o risco de se perderem de sua alma, nos momentos de vôos que só aos dois pertence.

O silêncio é o combustível do poeta e deveria ser respeitado, tanto quanto sua tristeza, que não poderia nunca ser investigada.
O poeta gosta da solidão, convive muito bem consigo mesmo, ainda que exploda em versos, prosas e muitas palavras soltas e em tantos pensamentos, até sem cabimentos. O poeta só precisa de um ouvinte, um leitor atento, de carinho, afagos e um, colo sossegado para vaguear os seus desvarios.

O poeta é um amável insensato, que dorme quando deveria estar acordado e tem insônia quando o mundo todo dorme sossegado.
Ao poeta, se deveria perdoar a loucura, a pouca compostura, o cabelo despenteado, o olhar esgazeado; pois a insanidade do poeta é eterna, além da saudade, pois sem saudade, o poeta não hiberna.

Os poetas são sonhos personificados e só por isso deveriam ser cortejados, respeitados e poupados das mágoas desse mundo, pois já tem as suas próprias. Poupados deveriam ser das dores, pois já sangram, sensivelmente pelas dores do ser amado.
Aos poetas, a anistia da razão a euforia da emoção e o beijo delicado.

Ah! Os poetas, esses gentis amantes com suas paixões intermitentes e eternos amores; são deliciosamente ousados e infinitamente atraentes.
Que se lavrem o estatuto, que se reconheçam esse tratado.
Que se abram as portas e que seus vôos beijem, o azul da imensidão sem regras, sem rótulos e sem grilhões; enquanto ainda vivem os poetas nesse mundo de ilusões.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Comunhão Infiel

Correm lentos seus dedos
Pelas matas dos meus cabelos,
Donde o perfume de capim cheiroso
Em arrepios sopram segredos.

Passeiam nus, seus olhos belos
Pelo meu ventre perigoso
Acordando meu sono manso.
Meu regato embriagado
Sustenta sonho e fantasias,
Na porção menina que não alcanço.

A tez inquieta desperta
Desejos na penugem serena
Em hora incerta;
Veneno na doçura da açucena.

O dorso descoberto anuncia o cio,
Que afogado se entrega
Aos sabores densos
Da bebida cruel;
Que na carne nunca é amena,
Na alma acalenta o frio,
Mata a sede dos sentidos.
Ah! Doce comunhão infiel.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Se

Se soubesse calar, ouviria anjos...
se aprendesse só ouvir,
perderia as palavras no vão dos lábios...
Se tocasse a canção ...
conheceria as notas que
flutuam nas falas...
Se tivesse sinos dourados ...
faria uma orquestra ...
Se pudesse escolher a melodia...
optaria pelos hinos...
Se coubessem nas minhas mãos...
colecionaria chuvas...
Se o tempo permitisse navegar nos ponteiros...
encalhava na hora da felicidade...
Se eu pudesse, pararia o sol...beijaria a lua...
caminharia nua nas estrelas...
Se tocasse, faria serenatas ao luar...
dormiria sob o manto negro
da noite...
me batizava no orvalho...
me alistaria na jornada das estrelas...
Se deixassem, me perderia nas chuvas,
sem pressa de voltar...
Se soubesse voar,
desenharia nas nuvens...
Se pudesse, roubava um oceano...
Se pudesse, guardava comigo
todas as brisas...
Se pudesse,
viveria as mil e uma noites...
Se pudesse, cometeria loucuras
que só as pessoas sãs cometem...
e viveria insanamente como manda
o juízo dos loucos...
Se pudesse, seria muito mais inconseqüente...
e muito mais livre...
Se pudesse, simplificaria muito
mais as falas e multiplicaria os gestos..
Se tivesse poderes, transformaria
em cristais as lágrimas de amor...
Se pudesse escolher preferia estar
só e mergulhada nos meu silêncios...
Se pudesse optar, preferiria sempre
olhar nos olhos das pessoas e confessar
o que vai na minh´alma...
sem reservas.
Se pudesse, daria um sentido a tudo
que anda vagando...
Enfim se pudesse...encontraria comigo mesma,
não por egoísmo,
para saber quem realmente eu sou...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Abraço poético



Naquele dia eu voltei pra casa pisando em nuvens, não ficara um detalhe, um senão que tivesse atrapalhado o brilho das horas vividas. Junto ao meu coração palpitante de feliz vinha abraçado o objeto do desejo, carregado com carinho para não ferí-lo.
Em casa ele foi cuidosamente colocado em lugar onde todos pudessem vê-lo e
até folhearem; me sentiria mais vaidosa quando os olhos passassem pela dedicatória.
Era preciso preparo para sentar e começar a beber a magia ali contida, assim quando os sons se calavam eu o buscava; passava minhas mãos com delicadeza em cada detalhe para sentí-lo completamente, fiz isso algumas vezes devagar, com medo de que ele me rejeitasse.
Acarinhei, cheirei e o abracei como quem abraça um amor querido para demonstrar o quanto eu o desejava nesse momento. Foi nesse dia, depois de namorá-lo e esperar o silêncio que o abri e no meio da minha solidão mergulhei inteira nos versos que murmuravam baixinho.
A medida que eu lia, as expressões do meu rosto iam se modificando, eu me sentia a Alice no país das maravilhas. E fui marcando com uma orelhinha todas as poesias que mais gostava para voltar a ler, ou para encaminhar aos que não tinham o prazer da sua deliciosa companhia, fechei-o para sonhar um pouco depois de ler: Realidade; me dei conta que tinha feito um monte de orelhas no meu objeto de prazer!
Sabe quando a gente come um doce gostoso que a gente não quer que termine? Pois estou eu assim com o meu livro: Põe-te de pé, poeta! Não quero que ele acabe então estou mastigando os poemas devagarinho, como a provar um a um e reter na boca o gosto de cada verso.
Pode até ser, como disse minha amiga poeta, que eu já tenha-os lido todos, de alguns eu sei que tenho lembrança como: Meus trovões ( é lindo) Reservado (que gerou uma porção de homônimos, numa intertextualidade maravilhosa) Bóias-Frias, Bifurcação entre outros, mas ter nas mãos um livro todinho reunindo emoções, sentimentos acondicionados com carinho é uma sensação única.
Como disse a Lu, nossa amizade está aí pelos 10 anos, virtualmente, nos vimos duas vezes, uma na Bienal e outra agora na sua palestra e é como se tomássemos cafezinho juntas todos os dias.
Ainda extasiada pela leitura da qual me ocupei essa manhã, vou deixar com vocês um poema desse livro, e que eu gostaria de ter escrito:

Enganando-me
Lucelena Maia

Quantos braços me abraçaram,
Em quantos braços me joguei.
Fui revolta, não importa,
Como consequência, viciei.


Quantas bocas me beijaram,
Quantas bocas já beijei.
Foi despeito, não importa,
O resultado é que gostei.


Quantos homens me despiram,
Quantas vezes me entreguei.
Foi obsceno, não importa,
Ao destino, me abracei.


Quantos anos se passaram,
Desde a primeira cama em que deitei.
De todos os homens que me amaram,
Foste o único que eu amei.


Quanta humilhação. Tu não me amavas.
Fui objeto de aposta e de prazer...
Embriagada de ódio, tornei-me ousada,
Deite-me com todos e fiz saber.


Ali reunidos no meu cantinho, estão : Uma sujeita esquisita, Girassóis ao meio dia ( Cissa de Oliveira) Fatos reais da vida em prosa e verso (Faiçal I. Tannús)
Entretempo (Rosana Chrispim) Pretextos ( Rosa Pena) Fernando Pessoa, castro Alves e Põe-te de pé, poeta! (Lucelena Maia) entre outros tantos que ficam sempre à mão para eu bebericar entre uma refeição e outra.

Anjos são perfumados?

Era-me peculiar aquela sensação de cheiros invadindo as narinas; despertava minha memória olfativa. Algumas vezes levava-me a lugares, outras à pessoas queridas; cenas e cenários que bem guardados desfilavam tão vivos quanto no dia em que aconteceram.
Eu disse era? Não. Ainda o é.
Não é coisa que se estimule, num átimo e o desenrolar de uma lembrança toma-me de assalto, enche-me de saudades.
Nunca soube explicar porque algumas lembranças tinham cheiros, percepção de presença tão táctil.
Retinha comigo essa informação com medo de partilhar e me sentir uma tola, porque as vezes o perfume não era de ninguém, nem ele perfumava o ar naquele dia, mas é estranhamente tão forte quando esbarra em minhas recordações que chegam a incomodar.
Não saberia comparar a nenhum perfume conhecido, algumas lembranças, ou mesmo sensações de momentos especiais, pois que são aromas delicados e deliciosamente embriagadores.
De repetido somente um que lembra-me defuntos, não sei o porque, mas quando a tristeza é muito intensa, eu sei que esse é o único que volta.
Disse-me a Odete que são perfumes de anjos. Aqueles que não há similares por onde ando, eu acredito, mas quem explicaria o de defuntos?
Anjos mórbidos? Talvez...

domingo, 18 de outubro de 2009

O extase da fúria

O corpo se embate com a alma
entre a fúria do querer
e a integridade do já muito saber

Nas rajadas da impulsividade
quase desumana, morre à míngua
o entusiasmo, à prova da língua

Entre o pecado e a razão
o desespero e a força bruta;
sibila o músculo desequilibrado: coração

Assim entre a penumbra das sensações,
de visão turva e paladar atropelado
engulo num trago seco outra maldição

Cuspindo marimbondos


Estou cuspindo marimbondos
andando de senho derrubado
pés querendo comer kilômetros

Estou amarga pelos cômodos
a alma no corpo chumbado
concebendo logros aos metros

Estou andando em círculos fechados
pisando brasas, lambendo fogo
numa distância insuportável de ser

Estou menos viva e mais rude
suplicando que a solidão me abrace
nas noites e dias que fujo de viver

Fui aquém de mim, além do que pude,
e para a covardia não há disfarce
então, morro ou mato esse sofrer

Estou cuspindo marimbondos
não de fogo; de ferrões em brasa
que me saem queimando pela boca

Palavras rasgando a garganta
e outras tantas que não desentalo
envenenando-me até o talo

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Fórceps

Esvairam-se os mistérios
levados como pó, voaram
não deixaram sequer pegadas

Com eles, devaneios e ilusões
acalentadas secretamente
rasgadas a frio, sem emoções

Uma nesga de tristeza
me abate e joga ao solo
o refinado gosto da sutileza

Morte anunciada


A flor da pele todos os desejos
feneceram antes do tesão
se espalhar pelo ambiente


Na língua calada por beijos
a falsa certeza tolheu a ilusão
que teve morte impaciente


Exalando presença lúdica
o ego criminosamente eregido
mostrou-se presença única


Ficou esquecido nos lençóis
o muito do pouco consumido
cantarolado em solfejos bemóis


A carcaça trajada de ansiedade
recolhe o silêncio desajeitado
e se mete de vez na obscuridade

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Nasci poeta?!

Não sei se nasci de um acidente
ou meu nascimento o foi, sem retórica
Não sei se a poesia me é inconsequente
se jorra sem luta ou se dela virei parabólica

Nasci congestionada, represada
de emoções e sentires acachapantes
Que se não envaziar-me até o nada
sufocam-me os moinhos de Cervantes

Oh Deus me esfolastes a alma vil
assim que a luz me acendeu a vida,
fiquei contida como pólvora, num barril

Guardo palavras nas mãos calejadas
dores e alegrias que na alma sangram
vertendo pelos dedos rimas marteladas.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Confesso!

Custa-me confessar o corpo em desalinho
esparramado sobre o leito quente,
o ventre abrasado e sem carinho
sabendo-lhe insone e a carne dormente.



Sussurrar seu nome não me atrevo
ainda que o tenha apertado entre os dentes;
é loucura eu sei, e não posso, não devo,
padeço então como fazem os dementes.



Posso ouvir a chamar-me seus gemidos
convidando-me o corpo ensandecido
à revirar-me no leito aos gritos
numa noite inteira de amor pervertido.



Confesso sem pudor: o desejo me queima
o corpo pede e insiste; a cabeça diz não e teima.